quinta-feira, 5 de maio de 2011

Tiro de Misericórdia

 Ilustrações de Mello Menezes

Outro retrato pungente da infância na música popular é sem dúvida uma das obras-primas da dupla João Bosco e Aldir Blanc: Tiro de Misericórdia, lançada em álbum homônimo de João no ano de 1977. A capa e contracapa desse disco - surpreendentemente ainda inédito em CD - estão reproduzidas acima.

Tiro de Misericórdia
João Bosco e Aldir Blanc

O menino cresceu entra a ronda e a cana
Correndo nos beco que nem ratazana.
Entre a punga e o afano, entre a carta e a ficha
Subindo em pedreira que nem lagartixa.
Borel, juramento, urubu, catacumba,
Nas roda de samba, no eró da macumba.
Matriz, querosene, salgueiro, turano,
Mangueira, são carlo, menino mandando,
Ídolo de poeira, marafo e farelo,
Um deus de bermuda e pé-de-chinelo,
Imperador dos morro, reizinho nagô,
O corpo fechado por babalaôs.

Baixou oxolufã com as espadas de prata,
Com sua coroa de escuro e de vício.
Baixou caô-xangô com o machado de asa,
Com seu fogo brabo nas mãos de corisco.
Ogunhê se plantou pelas encruzilhadas
Com todos seus ferros, com lança e enxada.
E oxossi com seu arco e flecha e seus galos
E suas abelhas na beira da mata.
E oxum trouxe pedra e água da cachoeira
Em seu coração de espinhos dourados.
Iemanjá, o alumínio, as sereias do mar
E um batalhão de mil afogados
Iansã trouxe as almas e os vendavais,
Adagas e ventos, trovões e punhais.
Oxum-maré largou suas cobras no chão.
Soltou sua trança, quebrou o arco-íris.
Omulu trouxe o chumbo e o chocalho de guizos
Lançando a doença pra seus inimigos.
E nanã-buruquê trouxe a chuva e a vassoura
Pra terra dos corpos, pro sangue dos mortos.

Exus na capa da noite soltaram a gargalhada
E avisaram a cilada pros orixás.
Exus, orixás, menino, lutaram como puderam
Mas era muita matraca pra pouco berro.
E lá no horto maldito, no chão do pendura-saia,
Zambi menino lumumba tomba na raia
Mandando bala pra baixo contra as falanges do mal,
Arcanjos velhos, coveiros do carnaval.

– Irmãos , irmãs, irmãozinhos,
   por que me abandonaram?
   por que nos abandonamos
   em cada cruz?
– Irmãos , irmãs, irmãozinhos,
   nem tudo está consumado.
   a minha morte é só uma:
   ganga, lumumba, lorca, jesus...

Grampearam o menino do corpo fechado
E barbarizaram com mais de cem tiros.
Treze anos de vida sem misericórdia
E a misericórdia no último tiro.
Morreu como um cachorro e gritou feito um porco
Depois de pular igual a macaco.
Vou jogar nesses três que nem ele morreu:
Num jogo cercado pelos sete lados.

Áudio e vídeo João Bosco



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